quinta-feira, outubro 18, 2007

ESTE BLOG ACABOU

Amigos, agora visitem
http://dioramanoturno.blogspot.com/.

Por lá, as coisas continuam. Por aqui, nada mudará.

sábado, setembro 29, 2007

Confraria

Estou na revista eletrônica Confraria do Vento, com dois contos do meu livro. Espero que gostem.

domingo, setembro 02, 2007

Canção dos Caramujos que vão ao enterro

Ao enterro de uma folha seca
Vão dois caramujos
Têm a concha negra
E véu negro em volta das antenas
Vão pela noite
Uma bela noite de outono
Quando chegam coitados!
Já chegou a primavera
E as folhas que jaziam pelo chão
Todas tinham ressuscitado
Os dois caramujos
Ficam muito desapontados
Mas eis o sol
O sol que lhes diz
Façam o favor façam
O favor de sentar
Tomem um copo de cerveja
Se vontade lhes dá
Tomem caso queiram
O Ônibus para Paris
Parte esta noite
Poderão admirar a paisagem
Mas não ponham luto
Sou eu quem lhes aconselha
Escurece o branco do olho
E também enfeia
Histórias de enterro
São tristes e nada belas
Ganhem as suas cores
As cores da vida
Então animais
Árvores plantas todos
Começaram a cantar
A cantar aos berros
A verdadeira canção viva
A canção do verão
E todo o mundo a beber
E todo mundo a saudar
É uma bela noite
Uma bela noite de verão
E os dois caramujos
Voltam para casa
Voltam muito comovidos
Muito felizes
Como beberam demais
Ziguezagueiam um pouco
Mas no céu lá no alto
A lua protetora.


[Jacques Prévert]

domingo, agosto 26, 2007

Rosa antigo

Sempre esquecia algo.
Era forte. Tinha amor.
E deu para ter desejos estranhos.
Ele que não fumava saiu
Para comprar cigarros
E voltou.

Pensou séculos na Pequena
(era assim que ele a sonhava)
E ela estava ali. De volta.
E ele com cigarros nas mãos.

(Alexandre Beanes)

***
O cheiro era de flor, de flor, de flor. Tépido e tonto, arranjo de paixão. Arrepios, suores. A fumaça do cigarro subia calma, saía pela janela, o dia lindo e tão azul, borboletas de ouro e cobre voejando, o mundo em sua estranha normalidade. Tudo em seu lugar, ele diria. Inclusive ela, na cama ao lado dele. Tudo em seu devido lugar. De volta.


Tanto ele fez, tanto esperou. Noites secas de insônia e mal-estar, quantas. Voltara a fumar. Nas tardes de domingo, nulas, vazias, acendia um cigarro e acariciava, idiota, uma foto que carregava sempre consigo. Acariciava o papel. Ouvia Ella Fitzgerald. Tornava a fumar. De quando em quando, uma lágrima. Suspirava fundo, fundo. Uma dor sem nome.

(Mas como doía...!)

Contava o tempo, olhando o retrato. Planejava. Abandonava. Fugia. Pensava. Cansava. Olhos verdes na foto, bem verdes. E aquela cor de blusa, aquele rosado esquisito. Tão bem nela, na pele pálida. Ela mesma: lábios fininhos, nariz pequeno, olhos de samambaia. Rosada. Meu bebê. Mon coeur. Mon amour.

Dizia baixinho, só para o retrato ouvir: volte, meu bem, volte logo. Não demora, criança. Volta pra mim. Como uma evocação. Bobo de dor.

O calendário não mentia. Já era hora, já era hora dela voltar. Mas não voltava. Ele, de portas abertas. Ela, nada. Não vinha. Não vinha. Não vinha. Viria? Dúvidas, tristezas enormes. E se nunca mais? Era possível. Mas, seria mesmo possível? Não. Negava. Fechava os olhos. Não, e outro cigarro.

Daí que um dia ela apareceu diante dele assim, de surpresa, como brotada do chão, vestida de rosa e sorrindo, vermelhinhas as bochechas, com um chocolate numa mão e vinte reais na outra. Sem mistérios. Dizendo: vamos ali comigo, quero que conheça uma coisa. Ele foi. Mudo, transfigurado, bêbado, taquicardíaco.

Era uma sorveteria. Pediu, charmosa que só, sorvetes de rosas. Ele, por sua vez, navegava em torno dela. Ela, ela, ela. Ela feliz, criança que mostra um brinquedo novo e fantástico ao adulto. Aguardando que ele provasse o sorvete. Ele provou, e gostou. Ela riu e deixou ver um pedacinho da gengiva. Até parecia que nunca havia existido um hiato entre os dias, entre eles, no meio da vida.

***

Voltara.
E o cheiro era de flor, de flor, de flor.
Tépido e tonto
arranjo de paixão.
...

[B. e eu]

quarta-feira, agosto 01, 2007

ATENÇÃO, PESSOAS:

Ademir Assunção informa:

"Está saindo nova edição da revista Coyote. O número 15 começa a chegar nas livrarias de todo o país em duas semanas, no máximo. É uma edição bem especial para nós, editores: estamos completando 5 anos de uivos contra o conformismo. A cereja do bolo é o dossiê Julio Cortazar, com poemas (sim, poemas) jamais traduzidos no Brasil e fragmentos da última entrevista concedida por ele a um jornal francês. As traduções são de Cassiano Viana. Mas tem muito mais nas páginas da revista. Aguardem. "

sexta-feira, maio 18, 2007

Aranhas

- Ô, mããe! Uma aranha “modeu” minha cabeeeça...
A mãe franziu a testa. Nem respondeu. Aquilo já estava ficando chato.
- Mãe, você ouviu? Uma aranha “modeu” minha cabeça! – insiste o menino.
- Pare com isso. Aranhas não saem mordendo a cabeça dos outros desse jeito.
- É “vedade”, mãe! – o menino choraminga, manhoso. E a mãe, que em absoluto era uma pessoa ruim, afaga a criança.
- Então me mostra. Onde foi que a aranha te mordeu?
O menino aponta com seus dedinhos gordos de três anos uma pequena saliência logo acima da nuca. A mãe olha bem; parece uma espinha, ou um fio de cabelo encravado.
- Filho, isso não é mordida de bicho. É uma bolinha que nasceu aí. Não coce.
- Mas, mãããeee...
- Vai brincar, vai. Olha sua bola ali no quintal.
O menino foi, se coçando. Só não entendia porque a mãe não acreditava. Uma aranha havia, realmente, mordido sua cabeça. Ele pensou: foi de noite, quando dormia. Veio uma aranha e se enfiou por entre os cabelos, aninhando-se na massa castanha, e ali mordeu. Mordeu porque era um bicho malvado. O menino tinha muito medo de aranhas, porque elas têm tantas pernas e são tão feias! E fazem teias que dão arrepios.
De noite não queria ir para a cama. Foi preciso a voz enérgica do pai, que naturalmente também não acreditou na história. O menino fez a mãe esquadrinhar o teto, os cantos da parede, para garantir que não havia nenhuma aranha por perto.
- Que imaginação! – suspirou o pai. _Onde já se viu uma coisa dessas? Aranhas não mordem. Não essas daqui de casa; são inofensivas.
- Ele deve ter sonhado. – a mãe concluiu.
Passou-se um bom tempo – na verdade alguns anos – para que o menino reclamasse de novo.
- Mãe, uma aranha mordeu minha cabeça.
A mãe se lembrou.
- Filho, você já é bem grande para ficar com besteira. Uma vez, quando você era pequeno, veio falando isso e não era nada. Deixa eu ver.
Afastou os cabelos e viu uma feridinha vermelha.
- Você coçou? Deve ter sido um pernilongo – a mãe prosseguiu o exame, aproveitando para ver se não havia piolhos. - Pernilongo nada, mãe! Foi uma aranha que me mordeu. Ele veio do teto e me mordeu!
- Mordeu coisa nenhuma! Aranhas não mordem, entenda isso. Se não acredita, pergunte à sua professora.
Ele não perguntou nada para a professora, porque sabia a resposta. E como estava certo do que dissera, não precisava da opinião de ninguém nesse assunto. Era bem grande, já, para saber o que havia acontecido em sua própria cabeça durante a noite. Uma aranha, e pronto. Nunca mais falaria sobre isso. Na hora de dormir, olhou bem atrás da cama, e nos cantos da parede. Viu uma papa-mosca de barriga rajada percorrer com avidez a madeira da janela. Pensou em matá-la, mas era tarde, porque a danada escapara pela fresta. O menino tampou com jornal todos os cantinhos abertos, para que ela não voltasse mais.
Ele não se lembrava em que momento havia se descuidado das aranhas em seu quarto. O fato é que muito tempo depois outra ferida apareceu em sua cabeça. Muito tempo depois.
- Filho, que tanto coça essa cabeça?
- Você não vai acreditar, se eu disser.
- Que foi?
- Uma aranha mordeu minha cabeça. – quebrou a promessa, falou no assunto.
- Ah, filho, pelo amor de Deus! - exasperou-se. - Lembra quando...
- Sim, eu me lembro muito bem, e daquela vez você também não acreditou. Então esquece, tá? – o menino saiu batendo os pés, e foi para a rua. Tinha então quinze anos. Saiu para a rua e ficou recordando o incidente, percebendo que há anos havia deixado de vigiar a janela. “Elas demoraram para voltar”, pensou, alisando com a ponta do indicador a ferida. Notou que estava molhada, mas não era sangue, e sim um líquido transparente.
Foi dentro do seu primeiro carro que ele sentiu uma pontada ardida na nuca. A namorada ao lado.
- De novo... – ele passou a mão nos cabelos e tocou o caroço.
- De novo o quê? – a moça quis saber.
- Uma aranha mordeu minha cabeça. – ele dizia as palavras sem vontade nenhuma de dizê-las, sabendo de antemão o que ouviria. No entanto, mais uma vez não pôde evitar.
- Impossível! Deixe eu ver. – a garota passou a mão e identificou uma saliência. - Isso não é mordida de bicho. É uma espinha.
- Tudo bem, tudo bem, se você acha... – aprendera cedo que não adiantava discutir com mulheres. Especialmente sobre aquele tema.
- Não coce. – o velho conselho. Ele não coçaria. Mas sabia que era uma aranha a malfeitora.
...

Os anos vieram e se foram. O menino virara homem, estudara, casara-se. E as aranhas seguiram-no, importunando-o como de costume, com mordidas na cabeça. Ninguém acreditava nele, nunca, e ele desistira de tentar mostrar às pessoas que isso era realmente possível. Foi ficando velho, via seus filhos crescerem, depois viu os netos, depois via a morte de perto e já dormia sozinho quando em uma noite de calor sentiu a mordida. Pela primeira vez estava acordado no momento do ocorrido. Acendeu a luz do abajur, luzinha fraca, e procurou sob o travesseiro, nos cantos, embaixo da cama, no próprio pijama. “Escapou”. Voltou a dormir.
Horas depois foi despertado. Uma pontadinha suave no dedão do pé esquerdo. Abriu os olhos, ergueu os lençóis e avistou uma pequena aranha sobre a unha. Pareceu-lhe que a aranha estava falando. Em seguida, antes que pudesse apanhá-la, outra aranha apareceu e subiu em seu joelho. Mais outra, e mais outra, todas caminhando sobre ele, todas diminutas como percevejos. Com a luz do abajur pôde ver melhor. Eram muitas, várias, passeando seus corpinhos delicados pelo colchão. Ele colocou a mão na cabeça e sentiu umas dores irritantes e facilmente localizáveis. Aranhas mordendo sua cabeça. E haviam tantas aranhas que era difícil saber o que fazer. Ele estava tão velho... Tentou levantar-se da cama, mas não foi possível, porque as aranhas ordenaram que ficasse. Ordenaram! Medo; chorou silenciosamente. Elas iam comendo devagarzinho, primeiro os pés magros e solitários. Demoravam-se na tarefa. O velho até começou a sonhar, de tanto que as aranhas demoravam para executar o trabalho. Sonhou com uma gigantesca aranha com cabeça de homem. Era dele, a cabeça. A aranha corria, com doze pernas, corria para debaixo de uma cama muito velha, de madeira escura, e ali ficava a espiar, espiar...O que espiava tanto? O velho não sabia. Como não conseguiu encontrar a resposta, acordou. Estava já comido pela metade. Tinha certeza de que isso iria acontecer um dia. Tinha que acontecer. Tirou os óculos, colocou-os no criado mudo e, estoicamente, deixou que as aranhas terminassem o seu trabalho.


[Marpessa]

terça-feira, abril 17, 2007

Clarice, a dama

Abaixo, um trecho do conto História Interrompida. Mais abaixo, frases extraídas de diversos textos. Peguei
daqui. Espero que apreciem.

HISTÓRIA INTERROMPIDA

"Ele era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a entender que seu maior defeito consistia na sua tendência para a destruição. E por isso, dizia, alisando os cabelos negros como quem alisa o pêlo macio e quente de um gatinho, por isso é que sua vida se resumia num monte de cacos: uns brilhantes, outros baços, uns alegres, outros como um "pedaço de hora perdida", sem significação, uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já espedaçados.

Eu, na verdade, não sabia o que retrucar e lamentava não ter um gesto de reserva, como o seu de alisar o cabelo, para sair da confusão. No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda. Eu lhe respondia que mesmo destruindo ele construía: pelos menos esse monte de cacos para onde olhar e de que falar. Perfeitamente absurdo. Ele, sem dúvida, também o achava, porque não respondia. Ficava muito triste, a olhar para o chão e a alisar seu gatinho morno."

(LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.)

***

CITAÇÕES

"Aliás - descubro eu agora - eu também não faço a menor falta, e até o que escrevo um outro escreveria." - A hora da estrela

"Onde aprender a odiar para não morrer de amor?" - Laços de família

"Não é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus." - Um sopro de vida

"É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo." - Perto do coração selvagem

"Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim." - A hora da estrela

"E de tal modo haviam se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu felicidade." - Laços de família

"Quem não é um acaso na vida? - "A hora da estrela

"Isto não é um lamento. É um grito de ave de rapina, irisada e intranqüila." - Um sopro de vida

"Com Deus a gente também pode abrir caminho pela violência. Ele mesmo quando precisa mais especialmente de um de nós, Ele nos escolhe e nos violenta." - A paixão segundo G.H.

"Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos." - Perto do coração selvagem

"Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair." - A paixão segundo G.H.

"Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebradiça. - "Laços de família

"Abandone-se, tente tudo suavemente, não se esforce por conseguir - esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade." - Laços de família

"O cacto é cheio de raiva com os dedos todos retorcidos e é impossível acarinhá-lo. Ele te odeia em cada espinho espetado porque dói-lhe no corpo esse mesmo espinho cuja primeira espetada foi na sua própria grossa carne. Mas pode-se cortá-lo em pedaços e chupar-lhe a áspera seiva: leite de mãe severa." - Um sopro de vida

"Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho." - Laços de família

"Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar. Acreditar chorando." - A hora da estrela

"Oh Deus, eu que faço concorrência a mim mesma. Me detesto. Felizmente os outros gostam de mim. É uma tranqüilidade." - Um sopro de vida

"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas continuarei a escrever." - A hora da estrela

"A eternidade é o estado das coisas neste momento." - A hora da estrela

"Escrevo por ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens." - A hora da estrela

"Eu nunca fui livre na minha vida inteira. Por que dentro eu sempre me persegui. Eu me tornei intolerável para mim mesma." - Um sopro de vida

"Ser um ser permissível a si mesmo é a glória de existir." - Um sopro de vida

"Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando." - A paixão segundo G.H.

"Tudo o que poderia existir, já existe. Nada mais pode ser criado senão revelado." - Perto do coração selvagem

"Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa, minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai." - A paixão segundo G.H.

segunda-feira, abril 16, 2007

Gajskjjbkhykjvk

Fiz uma descoberta: meu último tópico, sobre o que eu pensava de literatura e literatices, apresentava contradições. Nele eu dizia não gostar de discutir sobre literatura, mas pensando bem eu gosto, sim, porque o faço em comunidades orkuteanas e em mesas de bar. Portanto... Não era verdadeiro. Então eu joguei fora.

domingo, março 04, 2007

Hotel

Em todo quarto de hotel há um demônio a nos apavorar com a hipótese sinistra de jamais tornarmos a ver novamente o mundo ao qual pertencemos, ou dizemos pertencer. Por toda parte sinto-me só, mas em nenhum lugar estou tão solitária quanto em um quarto de hotel. Qualquer cidade, qualquer país do mundo – e já estive em muitos deles – tem seus hotéis, sob variadas estrelas, nos quais o hóspede pode enfim descansar de uma viagem longa e exaustiva – as viagens são sempre longas e exaustivas – após tomar um banho comprido, organizar sua bagagem, espalhar-se pelo quarto que não pertence a ninguém, nem mesmo ao dono do hotel, que normalmente não conhece aqueles quartos de onde tira seu lucro. O poento caminheiro finalmente pode deitar-se em uma cama que já abrigou tantos outros corpos itinerantes; pode enfim debruçar-se à janela e observar uma paisagem desconhecida e, mesmo que seja um belo país, quase sempre menos atrativa do que aquelas paisagens que povoam as lembranças queridas, a ruazinha de terra, o caminho da escola, a casinha humilde do primeiro amor, bordéis, praças, bares, as solidões iniciais que se perdem dentro de nós para serem por fim reencontradas sob a luz de uma lâmpada desconhecida em um quarto desconhecido. Hotel.

A mim, nada parece justo. A vida me faz mal, muito mal. Ainda hoje pela manhã, ao despertar, rememorei em detalhes a noite da véspera e chorei com amargura singular: conhaques, dois maços de cigarro, uns silêncios que não deixavam nada para a imaginação. Doeu; o quanto, só eu sei. Mais do que a perda da esperança, afligiu-me a sensação de derrota, porque não fomos criados para sermos derrotados logo de cara. Roger adivinhava os meus motivos, e talvez por isso tenha preferido manter-se inescrutável, girando o cigarro entre os dedos magros, soprando a fumaça para longe, sempre à direita do próprio rosto, lançando olhares para o horizonte, ainda que esse horizonte fosse apenas uma parede mal pintada de azul em um restaurante que recendia a delicadezas ordinárias, um romantismo um tanto equivocado em suas paredes azuis e seus enfeites plásticos. De quando em quando fazia um gesto qualquer (eu conhecia todos, entendia todos) e no mesmo instante vinha-me aquela pontada no peito, e então eu tinha que tomar um gole grande e engasgar-me com outra coisa que não fosse lágrima.

Vinte e oito de março. Dissera a ele: - Hoje faz sete anos. Ele sorriu: - Eu sei. E calou-se. Para preencher o vazio, bebíamos. Os entreatos eram sempre muito mais longos do que os atos propriamente ditos, e portanto precisavam ser recheados, sob a pena severa de se tornarem mais incômodos do que o normal. Bebíamos e íamos para a cama mais mortos do que vivos, o bendito sono nos tomando de imediato. Não havia tempo para pensar em nada que não fosse agüentar-se, sobreviver, suportar. Sete anos olhando Roger acordar e acreditando ser isso uma espécie de paraíso, acordar e ver seu amante bonito despertando duas vezes por semana para sempre. Mas até os amantes se cansam e Roger decerto está cansado. Acredito mesmo que ele nutra por mim agora uma espécie de repugnância, pois sequer me toca. Não sei em qual curva do caminho isso tudo começou; quando vi, era tarde demais. Não há mais Roger e Linda, há apenas Linda, há apenas Roger.

Estivemos juntos ontem e nada dissemos, como se não houvesse, de fato, nada a dizer. Evitamos a dor maior; eu não quis perguntar, ele tampouco desejava ser inquirido, porque certamente não gostaria de dar respostas e, secretamente, alimento a idéia de que ele não pretende magoar-me, apesar de tudo. Ama a si mesmo e mantém outras amantes. Para meu infortúnio, não raro me apanho recordando os primeiros tempos, a primavera vívida e solar na qual nos derramamos, nos entregamos um ao outro em uma relação franca e vivaz. Hoje não passamos de cadáveres cinzentos que, por acaso, foram atirados juntos à mesma cova rasa.

Roger, ontem, fugiu e não pôde ocultar isso de mim. Meus olhos estavam atentos, fixados em cada movimento, em cada combinação de gestos, em cada sibilar, assobio, estalar de dedos, cigarro aceso, balançar de pés, menear de cabeça. Eu estava toda em Roger, enquanto ele escapava, escorregava como um gato que se recusa a ficar no colo e busca a liberdade esticando-se por qualquer fresta deixada pelos braços que o tentam reter. Assim estava Roger, assim o entendi, ou melhor, tive certeza do que era aquilo quando ele fixou a vista na parede azul, a alma lutando para fugir, um viajante observando o horizonte da amurada de um navio em alto-mar. Nessa hora tomei um gole dos grandes, bem grandes, e enxerguei pelo vidro do copo o rosto deformado de Roger, a cara assim derretida, escorregando para fora do ângulo de visão, a metade superior do rosto completamente virada para a direita em uma torção estranha.

Como não soubesse o que fazer, hoje pela manhã optei por sair de casa, tomar o primeiro ônibus para uma cidade da qual mal ouvira falar, procurar um hotel não muito caro e enfim deixar-me ficar por algum tempo, não saberia dizer quanto, mas o suficiente para que alguma coisa aconteça dentro de mim, para que algo mude, algo ligue ou desligue com força, de modo que eu possa perceber a mudança como algo positivo ou negativo, isso pouco importa, porque o que vale mesmo é mudar. Há um demônio aqui também, como em todos os outros quartos de hotel, mas este aqui é dos mais mefistofélicos. Pedi um vinho e um conhaque, o hotel não é dos piores, nem sei onde estou. Olho pela janela e não sei para que lado fica nada, é uma paisagem completamente desconhecida e isso, em vez de ser opressivo, acaba por tornar-se libertador. É esquisito que eu me sinta assim liberta, logo eu que sempre fui tão claustrofóbica em ambientes novos, mas o fato é que ninguém sabe que estou aqui, nem mesmo Roger, que para ele não devo satisfações, muito menos agora depois da noite horrorosa e da repugnância e do vislumbre dele tentando escapar pelo fundo de um copo, buscando a parede azul no restaurante mais ordinário jamais concebido.

Engraçado que jamais tenhamos colocado os pés em um hotel juntos, Roger e eu, Roger e Linda – como um dia foi, como não mais será.

[Marpessa]

sábado, janeiro 06, 2007

Música

Fiz uma resenha a pedido dos Krias (www.kriasdekafka.v10.com.br). Eu gosto das músicas deles, especialmente das letras. Vejam aí:

---

Rock e poesia, cuspida na cara
Falar de novas bandas no cenário atual é tarefa das mais difíceis, uma vez que há um derrame de novos grupos, vindos sobretudo da Inglaterra e Estados Unidos, que invadem rádios, revistas especializadas e MTVs mundo afora. A cada semana, uma nova salvação para o rock (ainda que saibamos que a maioria desses grupos não sobreviverá a uma audição mais acurada, confundindo-se uns aos outros, graças à seleção natural), mas só os mais “fortes” resistirão no mercado tempo suficiente para emplacar ao menos um segundo CD nas paradas.

No Brasil, bandas pipocam aqui e ali, representando os mais diversos gêneros e subgêneros, e o que é melhor, tentando sair da sombra das grandes bandas nacionais do passado. O rock nacional se complicou tremendamente: ao mesmo tempo em que surgem bandas que imitam o estilo e linha de composição de grupos internacionais, há aquelas que lutam por encontrar uma personalidade própria, ainda que não neguem influências e referências.

Krias de Kafka é um nome que remete diretamente ao escritor tcheco Franz Kafka, um dos maiores da literatura mundial, autor de obras como “A Metamorfose”, “O Processo”, “Colônia Penal” e “Carta ao Pai”, que revolucionou as letras no século XX devido à sua capacidade de assombrar a realidade com requintada visão do pesadelo cotidiano que habita o homem e suas profundezas – grande fonte de inspiração quando o assunto é o absurdo da condição humana, suas vicissitudes e facetas.

Mas há mais literatura por trás desta banda. Leminski, Haroldo de Campos e Drummond também fazem parte do caldeirão. Krias de Kafka é brasileira, e compõe em português – o vocalista e letrista Mateus Novaes, poeta inédito e beberrão convicto, despeja versos como “um ódio calmo me toma conta na hora do jantar / e não me sinto especial por isso”, ou “depósito/ de carne/ macilenta / mais ossos / que sonhos”, ou ainda “substitua meu sorriso desorientado/ por algo mais palpável / suponha-me outro, melhor/ com novos hábitos”, em melodias inspiradas em bandas como Sonic Youth, Pixies, Joy Division, Velvet Underground, Nirvana, Radiohead. A mistura funciona: André Linardi (guitarra solo) e Paulo Vinicius (guitarra base e violão elétrico), o baixista Valdir Martinez, Lucas Novaes (teclados, guitarra e violão elétrico) e o baterista recém incorporado à banda, André Okuma, conseguem obter uma mistura única, que ora remete à depressão suicida altamente refinada, ora à euforia punk primal, chegando por vezes a ser lírica e apaixonada. Não falam de amor diretamente: o enterram sob as palavras. Nada menos emocore do que “o banco do ônibus é macio/ O sofá de casa é macio / o abraço da mulher amada é macio / um desespero macio /( sem perfume ) / elevando a gravidade a mil”.

E bem que estamos precisando de um pouco de crueza que vá além do punk rock, que nos faça pensar. Um estágio intermediário entre o poema e a porrada, entre o amor e o desespero. Krias de Kafka nos oferece isso. Mas não vá buscar significado nos nomes das músicas: eles não têm significado algum; são escolhidos ao acaso – um dado interessante, em se tratando de uma banda que labora, além dos acordes, as palavras.